quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Aldeias raianas transmontanas


“O Leito e as Margens – Estratégias familiares de renovação e situações liminares em seis aldeias do Alto Trás-os-Montes raiano (1880-1988)” de Paula Godinho

A antropóloga Paula Godinho tenta perceber, num contexto que, nos últimos trinta anos, se vem distanciando da matriz agrícola, a extensão social da realidade casa, em seis aldeias do Alto Trás os Montes raiano, no tempo longo que vai de 1880 a 1987, com uma aproximação até à realidade de patrimonialização actual. (Ana Paula Guimarães)


«Este é um livro publicado em Janeiro de 2006 que tem como base um longo e exaustivo trabalho de campo na “raia” transmontana, desenvolvido entre 1982 e 1991, no qual a autora aprendeu a falar mirandês, galego e português transmontano. Um trabalho de campo que continuou e continua, 16 anos mais tarde, elucidando-nos sobre a diversidade cultural ibérica e as suas transformações nos espaços de fronteira. O formato base do livro foi a sua tese de mestrado em antropologia social, logo corrigida e aumentada. O primeiro que ressalta da publicação é a antropologia histórica que produz a autora, que é já parte da história antropológica da antropologia portuguesa e, atrever-me-ia, da antropologia disso a que chamamos Península Ibérica. Mas a autora não nos apresenta uma antropologia histórica apenas com base no seu trabalho de arquivo, senão que constrói uma antropologia das memórias sociais, com uso de documentos pessoais, literatura, histórias de vida e entrevistas em profundidade. 
Paula Godinho apresenta, nesta obra, uma etnografia multi-situada em seis aldeias da raia transmontana que fazem fronteira com os territórios do Estado espanhol. A autora, ao adoptar este procedimento metodológico, dá um salto qualitativo com respeito aos trabalhos já clássicos de Brian O´Neill, Joaquim Pais de Brito e outros, o que sem dúvida reforça o trabalho com “autoritas” e, também, com um quadro comparativo alargado. Este longo e dilatado processo de observação participante, com método comparativo, vê-se reforçado, ainda mais, com o rigoroso trabalho de arquivo. Através deste, e do seu cruzamento com a realidade observada, o leitor pode encontrar um quadro comparativo de tipo sócio-histórico (ex. estratégias de casamento, demografia...) que nos ajuda a entender melhor processos como o despovoamento do interior português. O excelente trabalho de Paula Godinho pode ser classificado, também, como uma etnografia de Trás-os-Montes, tornando-se incontornável para qualquer estudioso ou investigador que pretenda trabalhar lá. Ao mesmo tempo, a obra de Paula Godinho enquadra-se numa etnografia da fronteira luso-espanhola, dos seus olhares cruzados, das suas ambiguidades e das suas práticas sociais. Esta é uma etnografia que a autora chama de “identidades de orla”. Nelas têm uma especial relevância as relações que galegos e portugueses mantiveram na “raia” durante o último século, e o papel dos estados espanhol e português em desconfiar, travarem e limitar estas. Assim, a obra converte-se em leitura obrigatória para os investigadores sociais galegos que queiram compreender e interpretar o problema histórico da relação com Portugal e os portugueses. Torna-se por isso, num trabalho muito original, ao ter focado as relações com os territórios ibéricos de Castela e especialmente a Galiza. A estrutura da publicação está organizada em sete capítulos: Introdução, contexto, comunidade e relação com a terra, gravidez e nascimento, casamento, velhice, morte e herança, grupos juvenis e festa dos rapazes. 
No primeiro capítulo, a autora mostra-nos sobre uma “mesa nortenha” o problema de investigação: a ideologia da “casa” e a sua transformação com a emigração dos anos 1950, 60 e 70. Para isso convida ao banquete um leque de autores incontornáveis: João de Pina Cabral, Brian O´Neill, Carmelo Lisón Tolosana e outros. O resultado, que vem a seguir, é muito enriquecido pelo diálogo com esses autores e vem logo a seguir. No segundo capítulo, a autora caracteriza as povoações estudadas. Por um lado, lamentamos que numa obra publicada em 2006, os dados demográficos de evolução da população só atinjam o ano 1988, mas fica bem demonstrado que o povoamento e o despovoamento do interior rural português são fenómenos históricos. Por outro lado, queremos sublinhar que o leitor que vive e conhece Trás-os-Montes vai questionar o nome real das aldeias estudadas, pois a autora, seguindo princípios éticos para garantir a confidencialidade, vai utilizar topónimos fictícios. Se bem, é certo, que quem conhece o terreno que a autora estuda vai acabar por descobrir o nome real das aldeias, ajudado também pelas fotografias do fim da publicação. É este um procedimento diferente do historiador, e pessoalmente pensamos que se Paula Godinho colocasse no texto os nomes reais, as pessoas das comunidades estudadas não se sentiriam ofendidas pelas informações e interpretações da autora. 
O capítulo terceiro é uma magnífica apresentação da transformação da estrutura social rural transmontana. Utilizando o critério básico da propriedade e o uso da terra, cruza este com uma caracterização de tipos sociais (exemplo: lavradores, proprietários, jeireiros, criados, caseiros, rendeiros, meeiros, cabaneiros, pastores, vagamundos, ciganos). Este capítulo é um bom contributo para o questionar das imagens de homogeneidade das comunidades rurais transmontanas, tópico que não escapa a esta análise crítica de Paula Godinho. Os capítulos quarto, quinto, sexto e sétimo abordam os ciclos vitais e as trajectórias biográfico-rituais das aldeias estudadas. Aqui, são analisadas as estratégias de controlo da transmissão da propriedade através da herança, as mães solteiras, o apadrinhamento, a bastardia. A utilização de literatura oral, literatura escrita e etnografias constróem uma triangulação que ilumina, desde vários focos, o problema em causa. A autora empenha-se e consegue com grande brilhantismo, demonstrar que as aldeias nunca foram universos sociais fechados, analisando as estratégias de casamento: a endogamia de aldeia, a isogamia, o “casar acima” e outras. Também analisa o celibato, o retardo no casamento e as modalidades de residência (ex.: a residência nato-local pós-casamento). Não deixa tampouco de fora os prelúdios e rituais de iniciação ao casamento, o namoro, passagens de grande beleza etnográfica, nos quais a autora aponta as mudanças sociais desde o século XIX, em que o grupo doméstico desempenhava um papel mais importante na eleição do cônjuge, até aos tempos estudados pela autora, em que a comunidade e a livre eleição são também importantes. 
No capítulo sexto, Paula Godinho apresenta uma antropologia da velhice, da morte e da herança como sistema de transmissão de patrimónios. Aqui, analisa a herança pós-mortem, existente até os anos 1970, como uma estratégia de conservação indivisa do património familiar e como garantia dos cuidados dos filhos aos pais durante a sua velhice. No capítulo sétimo, a autora faz uma antropologia da juventude e de alguns rituais de afirmação da mesma como por exemplo as festas dos rapazes. Na conclusão e no posfácio escrito de 2005, a autora aponta alguns caminhos para continuar a investigação: o despovoamento, a urbanização de núcleos médios como Bragança ou Chaves, a continuidade da emigração, os “fogos apagados” ou vivendas sem gente, 11 meses por ano, a mudança tecnológica, o problema do desenvolvimento, as mudanças nos padrões de consumo e a patrimonialização das ruralidades. Em suma, uma obra que actua como espelho e que nos ensina a compreender melhor e a reflectir sobre o que fomos e estamos deixando de ser. Uma obra imprescindível que é já um ponto de referência na antropologia portuguesa e ibérica.» Prof. Dr. Xerardo Pereiro, UTAD [Barrosanis]


Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... | Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[disponível também da autora os seguintes títulos: “Mundo Rural – Transformação e Resistência na Península Ibérica (Século XX)” com Dulce Freire e Inês Fonseca e “Festas de Inverno no Nordeste de Portugal – património, mercantilização e aporias da cultura popular”]

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